Zimbábue, liberdade de imprensa e informação

Por Enio Moraes Júnior
Zimbábue. Desde a primeira vez em que li o nome, o último da lista da relação de países na enciclopédia, jamais o esqueci. Fica na África, na África sofrida, pobre e miserável. Isso eu sabia desde quando cursava o ensino médio. Depois de alguns anos, Zimbábue foi se tornando no meu vocabulário uma palavra de uso oportunista, usada até de modo leviano, confesso.
- Senhor, aqui é do cartão tal... O senhor foi sorteado para adquirir o nosso serviço. Podemos conversar?
- Não, muito obrigado.
- Senhor Enio, por favor, são só alguns instantes... O senhor já possui algum cartão?
- Já, mas eu estou cancelando todos porque estou viajando na próxima semana e devo ficar algum tempo fora, em um outro país, por dois ou três anos.
- Senhor, mas nós temos cobertura internacional.
- Não, mesmo assim não. Obrigado.
- Mas, senhor, o senhor pode usar nossos serviços em qualquer país. Para onde o senhor vai?
- Para o Zimbábue.
- Ãaaaaaaaa. Tá. Então boa viagem!
Pronto: Zimbábue. Essa foi durante alguns anos a palavra-chave para dispensar esse tipo de telefonema. Selar esse destino era cortar a necessidade de ter um cartão “aceito em qualquer país”. Eu achava que todos haviam lido ou estudado que existia o Zimbábue e que ele era miserável, nada mais. Apostando nisso, esperava que os funcionários dos call-centers de cartões não mais me importunassem se eu falasse que ia para lá. “Em missão de paz”, acrescentava algumas vezes. A minha ‘desconversada’ era infalível!
Mas há alguns anos, jornalista formado, doutorando em Comunicação e estudando as relações da imprensa com os direitos humanos no mundo, o que era apenas um esdrúxulo e miserável país africano virou outra coisa. Com um significado menos engraçado, menos exótico, o Zimbábue agora chama minha atenção pelos índices aterrorizantes de violação dos direitos humanos, pelo desrespeito à cidadania e pela ausência de liberdade de imprensa. E talvez seja exatamente por este último detalhe que o país raramente esteja nos jornais, revistas ou sites.
Mas para minha surpresa, a publicação espanhola La Vanguardia do início de janeiro deste ano trouxe uma inquietante matéria sobre o Zimbábue (republicada no Brasil pelo Universo On-Line:
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lavanguardia/2008/01/31/ult2684u396.jhtm), uma ex-colônia britânica na época denominada Rodésia. A imprensa conseguiu mais uma vez minha atenção para o país.
A violação dos direitos humanos e o desrespeito à cidadania são flagrantes numa ditadura que já dura mais de 20 anos. “Os números falam por si: a expectativa de vida não chega aos 40 anos, a inflação oficial é de 8.000% (a real é estimada em 150.000%, a maior da história em qualquer lugar do mundo), e nem mesmo essa cifra significa nada diante da falta de dinheiro em circulação. A Reserva Federal de Zimbábue acaba de emitir novas cédulas de 1, 5 e 10 milhões de dólares locais. Os preços mudam a cada hora. Para comprar qualquer coisa -no caso improvável de que esteja à venda- é preciso levar uma sacola cheia de notas”, relata o jornalista Rafael Ramos, enviado a Harare, capital do país.
Mugabe – Com o poder total sobre o Zimbábue e sobre sua população desde 1987 (embora em 1980 já estivesse como primeiro-ministro), o presidente Robert Mugabe subemprega hoje mais de 60% da população do país, mantendo-se no poder apoiado por essa parcela de zimbabuanos em troca de pequenas subvenções como ferramentas de uso agrícola e comida.
Cerceada nos seus direitos civis, políticos e sociais, considerável parte dessa população está infectada pelo vírus da aids. Segundo dados publicados no ano passado pela Unaids – Joint United Nations Programme on HIV/AIDS– (disponíveis em http://www.unaids.org/en/) entidade ligada à Organização Mundial da Saúde, pelo menos 18% das mulheres grávidas no país são portadoras do HIV.
Mas apesar da miséria, algo de indignação e vida pulsa no Zimbábue: “Para um país que prende e tortura rotineiramente os membros da oposição, e no qual é contemplada com prisão a entrada no país e o trabalho sem permissão (que nunca é concedida) de jornalistas estrangeiros, surpreende o entusiasmo unânime com que todo mundo – atendentes de comércio, motoristas, porteiros de hotel, vendedores ambulantes, homens de negócios – critica e insulta Mugabe”, escreve Ramos.
Para completar o quadro caótico, o desrespeito à liberdade de imprensa, como acontece nas ditaduras, é um dos mais flagrantes problemas para a dignidade do povo zimbabuano. Dados disponibilizados no relatório Freedom Press 2006, realizados pela Freedom House (para detalhes consultar: http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=1), informam que de 194 países pesquisados, apenas 73 têm uma imprensa completamente livre, entre eles Chile, Uruguai, Estados Unidos, Canadá e os países da Europa Ocidental. Outros 54 possuem uma imprensa parcialmente livre, entre eles, o Brasil.
Mas o relatório também informa que do outro lado dessa ponta 67 dos países não gozam de liberdade de imprensa. Neste grupo encontravam-se Colômbia, Venezuela e grande parte dos países africanos, asiáticos e do leste europeu. O Zimbábue aparece nesta última e lamentável lista.
Democracia – Considerando a liberdade de imprensa experimentada por jornalistas e cidadãos de um país como sintomática em relação à qualidade da democracia, a posição do Zimbábue é eloqüente em relação às agruras do jornalismo local e também no que diz respeito à presença do jornalismo internacional na região.
Talvez esteja aí um dos grandes segredos da longevidade das ditaduras e da miséria da maioria de seus povos: o silêncio da imprensa cerceada e a conseqüente falta de articulação política dos cidadãos face à ignorância em relação às suas mazelas, que não são discutidas nas escolas nem denunciadas na mídia.
O respeito, total ou parcial, à liberdade de imprensa pode não ter conseguido construir grandes homens nos países democráticos, mas certamente onde quer que ela esteve ausente certamente se não construíram grandes países nem grandes liberdades humanas. Daí o mérito do jornalismo e da informação; daí a necessidade de o jornalismo cumprir o seu papel mais veemente: informar com respeito aos direitos humanos e ao cidadão.
“A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa de perto e ao longe, enxerga o que lhe mal fazem, devassa ou que lhe ocultam e tramam”, dizia o jornalista brasileiro Rui Barbosa em A Imprensa e o Dever da Verdade (São Paulo: Edusp, 2003. p. 22), publicado inicialmente nas primeiras décadas do século XX. Embora de lá para cá a imprensa tenha sido convertida em uma ‘vista do mundo’, a informação sempre foi e sempre será um saber a ser compartilhado por jornalistas e público em nome do bem comum.
Mas, além disso, “O discurso informativo não tem uma relação estreita somente com o imaginário do saber, mas igualmente com o imaginário do poder, quanto mais não seja, pela autoridade que o saber lhe confere. Informar é possuir um saber que o outro ignora (‘saber’), ter uma aptidão que permite transmiti-lo a esse outro (‘poder dizer’), ser legitimado nessa atividade de transmissão (‘poder dizer’)”, lembra-nos Patrick Charaudeau em Discurso das Mídias (São Paulo: Contexto, 2006. p. 63).
Embora pelo relatório da Freedom ainda tenhamos no Brasil uma imprensa parcialmente livre, quando leio as notícias nacionais de alguns jornais e revistas a que reputo credibilidade, fico tentado a pensar que esse Zimbábue descrito em La Vanguardia e em outras publicações ocasionais também é aqui... Mas há diferenças. A primeira é que por enquanto todos, no Brasil, ao contrário de lá – onde devem ser poucos –, compramos com cartões de crédito e somos “parcialmente” livres. A segunda é que essa liberdade parcial da nossa imprensa – e que representa também os limites da nossa cidadania ainda em construção – soam como ventos que anunciam chuva no sertão, nos enchendo de esperança de um país melhor.
Embora em países como o Brasil nem todos possam entender ou sentir os bons ventos de possibilidades que sopram, aqui e acolá, trazidos por um jornalismo sério e comprometido com a nação e com um mundo mais justo, regiões como o Zimbábue correm o risco de perecer pela falta desses ventos noticiadores das informações necessárias à construção de cidadãos. Em lugares onde não há uma imprensa minimamente livre dizimaram-se as liberdades para depois se dizimarem as esperanças e, finalmente, as vidas.

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