O risco da falta de ceticismo da imprensa

por Solano Nascimento

No final de dezembro de 2007, alguns dos principais jornais do país publicaram matérias acerca de um fato que reúne, ao mesmo tempo, um exemplo clássico de negligência de autoridades e outro de falta de cepticismo — ou excesso de confiança em fontes oficiais — por parte de jornalistas. As matérias saíram com os títulos “Toxina de fungo causa beribéri, diz Embrapa”, na Folha de S.Paulo, “Beribéri é causado por fungo que contamina o arroz”, no site do Globo Rural, e em vários outros veículos de imprensa. Apesar da falta de repercussão das matérias, elas envolvem a morte de pelo menos 42 pessoas e a hospitalização de centenas no Maranhão, a maior parte delas agricultores pobres.
O episódio começou a ser revelado no final de junho de 2006. Primeiro se soube que uma síndrome neurológica, cuja causa não havia sido identificada, matara sete pessoas e causara a internação de outras 24 no sul do Maranhão. As vítimas apareciam com inchaço nas pernas, diminuição da sensibilidade e aumento do tamanho do coração. Alertado por autoridades locais e pelo espaço que o caso começava a ganhar na imprensa, o ministério da Saúde enviou técnicos à região para descobrir o que estava ocorrendo.
O primeiro diagnóstico foi conhecido menos de duas semanas depois. De acordo com a Vigilância Epidemiológica do ministério, a beribéri — falta de vitamina B1 — havia matado os maranhenses. Essa vitamina, encontrada em alimentos como ovos, leite, legumes e alguns cereais, é fundamental para o funcionamento do sistema nervoso, dos músculos e do coração. Como registrou a Folha, Expedito Luna, coordenador da Vigilância Epidemiológica, afirmava estar “encerrada” a investigação sobre a causa da síndrome. E explicava o porquê: “A literatura médica reconhece que a prova terapêutica é uma confirmação diagnóstica. Tínhamos três pacientes muito mal na UTI, que reagiram com a suplementação da B1 e estão curados”, disse o coordenador ao jornal. Na Folha, a matéria sobre os estudos do ministério saiu com o título “Falta de vitamina B1 causou as mortes no Maranhão”. A reportagem apontou que a “pobreza e a má alimentação que decorre dela são traços que unem as vítimas no interior do Maranhão”. Em seu site, a Agência Brasil, da Radiobrás, publicou matéria semelhante, que tinha como fonte o governo maranhense. O título era “Falta de vitamina B1 matou 33 no Maranhão, informa Secretaria de Saúde”. A conclusão das autoridades foi divulgada quando o número de óbitos ainda não tinha chegado às quatro dezenas.
Ao Correio Braziliense, o Ministério da Saúde apresentou duas hipóteses distintas que estariam por trás da carência de vitamina B1. Nutricionistas da Secretaria de Atenção à Saúde que estiveram no Maranhão suspeitavam que o aumento no gasto energético de agricultores, por causa da colheita do arroz, aliado a uma dieta já pobre em vitamina B1, tinha causado o problema. Já a Vigilância Epidemiológica desconfiava que redução na oferta de alimentos provocada pela entressafra estava na origem da beribéri.
O que passou despercebido para quase a totalidade dos jornalistas é que a explicação do ministério da Saúde, por mais recheada de argumentos científicos que fosse, simplesmente não tinha lógica. Informações que já tinham sido publicadas sobre as mortes no Maranhão e os dados de um boletim elaborado pelo próprio ministério e divulgado no portal do órgão por ocasião das conclusões da Vigilância Epidemiológica deveriam ter alertado a imprensa para o fato de o diagnóstico das autoridades ser capenga. As razões: 1) dos 33 primeiros óbitos registrados, 12 ocorreram em maio de 2006. Por que uma carência alimentar teria se agravado a ponto de matar muito mais exatamente em um único mês?; 2) do total de mortes, sete ocorreram em Imperatriz, e as demais, nas proximidades. Por que uma carência alimentar teria se concentrado em uma região do estado e não em outras onde moradores têm os mesmos hábitos alimentares e as mesmas atividades?; 3) 94% das vítimas, somados mortos e hospitalizados, eram homens com idade entre 14 e 44 anos. Por que as mulheres e as pessoas de outras faixas etárias, que tinham a mesma dieta alimentar, foram poupadas da carência?
A falta dessas respostas deveria ter feito a maior parte dos veículos de imprensa exigir o aprofundamento das investigações. Isso não ocorreu. Em compensação, o ministério da Saúde, aparentemente convencido de sua própria explicação, despachou novos funcionários para o Maranhão com a incumbência de distribuírem doses suplementares de vitamina B1 e orientarem moradores a respeito da alimentação. Como o ministério estava equivocado, essas medidas não foram suficientes para impedir que, um ano depois, no primeiro semestre de 2007, o problema reaparecesse matando pelo menos outras quatro pessoas e levando mais de 200 aos hospitais.
Foi só depois das novas mortes que exames feitos pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pela Embrapa revelaram que, na verdade, a carência de vitamina B1 era o primeiro efeito do problema, e não a causa. O que realmente ocorreu, segundo os novos estudos, foi a contaminação de arroz por um fungo, responsável pela liberação da toxina citreoviridina, que inibe a absorção da vitamina B1. O fungo foi encontrado em um tipo de arroz que não é secado e costuma ser armazenado em locais úmidos e consumido no local. A existência do fungo explica a concentração espacial e temporal, e o tipo de arroz contaminado justifica o fato de homens agricultores, que comem o produto nas lavouras, terem sido a maioria das vítimas.
Além da falta de cepticismo e do excesso de fé nas fontes oficiais, o episódio mostra ainda a velha falta de memória da imprensa. Matérias publicadas com base nas descobertas da Embrapa e da universidade não registraram o erro do ministério da Saúde que, por sua vez, induziu a maior parte da imprensa a divulgar uma informação incorreta. A investigação não poderia ter sido “encerrada”, como anunciou a Vigilância Epidemiológica, e sua continuidade – que não foi assegurada por autoridades nem cobrada pela imprensa – poderia ter evitado as últimas mortes.
Solano Nascimento é pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp), da Universidade de Brasília

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