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A cobertura dos cartões corporativos enaltece o jornal como desencadeador dos eventos políticos e extrapola o papel jornalístico Por Luiz G. Motta

O beribéri do ministério

Caso de arroz infectado no Maranhão mostra negligência de autoridades e excesso de confiança da imprensa em fontes oficiais Por Solano Nascimento

Exibicionismo cor-de-rosa

Na cobertura do romance entre o presidente francês, Nicholas Sarkozy, e cantora italiana Carla Bruni, a objetividade jornalística perde o rumo e envereda pelo atalho do coração Por Beatriz Marocco e Enrique Santamaría

Zimbábue: imprensa e esperança cerceadas

Com inflação de 8.000% ao ano e expectativa de vida de 40 anos, Zimbábue enfrenta as mazelas de uma ditadura e o esquecimento pela imprensa censurada Por Enio M. Júnior

Brasil conectado

O país é campeão em acesso a sites de música e sites pornográficos, e bate recordes na telefonia celular. Sem dúvida estamos conectados, mas falta educação de base Por Thaïs de Mendonça

Nassif e o caso Veja

Jornalista publica blog analisando a revista semanal e abre caminho para a mídia criticar a si própria Por Cristhian dos Santos Camilo

Estadão: o senhor do tempo e da política

Por Luiz Gonzaga Motta

A cobertura pela imprensa brasileira do episódio dos cartões corporativos (ainda em curso) oferece aos analistas da mídia uma oportunidade interessante para refletir sobre o papel dos jornais como atores ativos da política contemporânea, tema ainda não estudado com a profundidade necessária.
Neste episódio a imprensa desenvolveu seu trabalho de guardião da ética pública, papel que os jornais costumam advogar para si. As denúncias dos abusos serviram para alertar a sociedade sobre os desmandos cometidos por funcionários e desencadear medidas coercitivas por parte do Estado. Até aí, tudo bem, a imprensa desempenhou um importante papel de vigilância social.
Quero aproveitar esta cobertura e fazer uma reflexão sobre a atuação dos jornais brasileiros como agentes ativos da política. Desvirtuando sua finalidade, os jornais extrapolam suas funções de quarto poder e assumiram de maneira deslavada um papel ativo no desenvolvimento da política, uma performance decisiva no jogo do poder.
Vou concentrar-me na cobertura do Estado de S. Paulo porque este jornal teve um papel determinante nas denúncias e assumiu no episódio uma função política explícita. Ele não revelou fatos apenas, foi muito além: arvorou-se como responsável pelas conseqüências que o episódio desencadeou, assumindo uma posição política explícita na cobertura. Passo a dar alguns exemplos sem pretender ser exaustivo.
No dia 31 de janeiro (pagina A4) o Estadão deu em manchete que o TCU decidira esmiuçar gastos do governo com cartões corporativos. No lide, o jornal relata, desnecessariamente, que foi ele quem revelara em reportagem do dia 13 que ministros utilizaram o cartão para quitar dívidas pessoais. Ou seja, o jornal se auto-atribui a notícia, passa a ser notícia de si próprio. Até aí, tudo bem, embora indesejáveis numa cobertura jornalística, autopromoções acontecem. Mas, há muito mais que autopromoção na cobertura do jornalão.
Neste mesmo dia e página, logo abaixo, o jornal traz matéria cujo título diz que a ministra Matilde Ribeiro balança. Nesta matéria, o jornal revela e assume a sua performance ativa na política. Ele mesmo diz que “o inferno astral (da ministra) começou quando o Estado revelou que ela gastou R$ 171,5 mil em viagens, todas pagas com cartão corporativo”.
No dia seguinte (1º. de janeiro), primeira página, o Estadão traz matéria sobre o pacote do governo limitando a ‘farra dos cartões´ (linguagem que o jornal passou a usar). Já na chamada da 1ª página, afirma que “o pacote foi anunciado 18 dias após o Estado revelar que os gastos com cartões bateram recorde no governo Lula”. O jornal não se contenta em anunciar os fatos, enaltece a sua própria performance política sugerindo que o pacote foi uma conseqüência de seus atos.
Na pagina A4, ainda na edição de 1º de janeiro, o jornalão continua se auto-enaltecendo e assumindo descaradamente sua face performativa. A matéria principal do jornal começa assim: “Dezoito dias depois de o Estado ter revelado o crescimento explosivo dos gastos com os cartões corporativos o governo decidiu ontem restringir...”. No meio do texto, o Estadão publica um fax símile de sua edição do dia 13, onde a primeira reportagem saiu.
Não se trata apenas de enaltecimento próprio. Trata-se do inconcebível fato de o jornal transformar-se na própria notícia e explicitar sua performance política. Ele atribui o desencadeamento dos fatos ao seu papel de agente dos acontecimentos e se rejubila por isso. Ele proclama ser o responsável pelas ações do governo, assume seu papel ativo de agente da política nacional. De ‘espelho’ da realidade o jornal transforma-se em agente ativo da realidade política.
O jornalão ainda não está satisfeito por ter conseguido dobrar o governo, seu apetite político é maior. No dia 2 de fevereiro o Estadão traz chamada de 1ª. página e manchete interna anunciando a queda da ministra. Quais são os agentes da história, personagens do noticiário? Claro, a ministra, que pediu demissão, e o jornal, que provou sua exoneração. O texto do lide diz: “... Matilde Ribeiro pediu ontem demissão do cargo. Em entrevista coletiva à tarde, a primeira desde que o escândalo das comprar pessoais com cartão corporativo foi revelado pelo Estado há vinte dias”. Mais uma conquista política, dobrou o governo e agora derrubou a ministra.
O jornal parece orgulhoso de sua performance. Na mesma pagina, traz um ‘calendário da queda’ onde confirma para o leitor a sua força política. O episódio, conforme o Estadão, só começa no dia 13 de janeiro, quando ele publica a primeira de suas reportagens: “O Estado publica reportagem que aponta aumento do gasto com cartões corporativos. Matilde Ribeiro é campeã entre os ministros”. O calendário segue, quadrinho a quadrinho, e no dia 29 diz: “O Estado publica reportagem apontando que a maior parte das despesas de Matilde...”. Ou seja, o jornal é a notícia, passou a ser personagem da política nacional, ele é o agente desencadeador dos próprios fatos que reporta.
Ainda no dia 02, na página A6, o jornalão traz matéria de Guilherme Scarance anunciando que escândalos já derrubaram 8 ministros. Até aí, fatos. Mas, a queda do ex-ministro Palocci, segundo o jornal, só “ocorreu oito semanas após o Estado publicar uma entrevista com o caseiro Francenildo dos Santos Costa...”. Ou seja, o jornal já tem no seu curriculum a queda de outros ministros e orgulha-se de sua performance.
O auto-enaltecimento e a arrogância jornalística chegam a ser irritantes, de tão repetitivos. No dia 04 o jornal diz na manchete da pagina A7 que a oposição quer investigar cartões dos ministros. Até aqui, fatos. Mas, o lide começa assim: “Um dia após o Estado revelar que pelo menos 10 dos 37 ministros declararam gastos com cartões corporativos em nome de assessores e subordinados, a oposição voltou a cobrar investigação”. Ou seja, segundo o Estadão, a oposição também só age depois que o jornal age. O ator principal da política (e de seu próprio noticiário) não são os políticos, os partidos nem a oposição. O ator principal é ele, o jornal, que faz a política acontecer.
No mesmo dia, no texto do sub-lide da página A4, a mesma arrogância jornalística: “A farra dos cartões corporativos já derrubou uma ministra. Matilde Ribeiro... pediu demissão na sexta feira, 19 dias depois de o Estado ter revelado que ela foi a campeã de gastos com cartão.” No dia 10 de fevereiro, pagina A4, o jornalão fala dos saques com cartões do Judiciário e do Ministério Público e mais uma vez atribui as decisões dos ministros de conter desvios como repercussões de sua ação, antes de tudo. Diz o texto: “... vários dirigentes do Judiciário adotaram soluções drásticas... Foi o que fez, por exemplo, o presidente do TSE... A decisão veio depois que reportagem do Estado revelou o aumento dos gastos com cartões e saques em dinheiro...”.
Qual é o fato, afinal? O jornal transforma seu noticiário no parâmetro dos acontecimentos, transforma o seu calendário de denúncias no calendário da política. Segundo o Estadão, as coisas acontecem na medida da sua intervenção no cenário da política. Poucas vezes vi tamanha pretensão de alguém em se transformar no senhor dos fatos, árbitro das coisas, o senhor do tempo, o senhor da política.


Luiz G. Motta é jornalista, professor da Universidade de Brasília e pesquisador do NEMP

Perigos e armadilhas na rede

Por Thaïs de Mendonça

Até para quem tinha dúvidas sobre a busca de notícias na internet e a substituição do hábito de leitura do jornal impresso, os resultados de uma pesquisa da Symantec, feita este ano, surpreendem. O Brasil é o país que registra o maior número de internautas cuja fonte principal de informação está nos sites de notícias e blogs: 93%. Brasileiros e chineses são os que mais baixam música pela internet: 89% das crianças e 88% dos adultos no Brasil costumam visitar com freqüência sites que oferecem música. Na China, esse número sobe: 97% (adultos) e 98% (crianças).
Relatório recente da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) mostrou que o Brasil ocupa a 72ª posição, em um ranking de 190 países, no uso da internet. Segundo a organização, quase 60 em cada grupo de 100 habitantes possuem celular no Brasil, enquanto em relação à internet 22,6 em 100 moradores já tiveram acesso à rede mundial de computadores.
Segundo os dados do Relatório da Economia da Informação 2007-2008, o número de celulares no Brasil triplicou nos últimos anos: de 34,8 milhões em 2002 para 99,9 milhões, em 2006. Na listagem geral sobre penetração da internet, o Brasil aparece bem posicionado em relação aos vizinhos, à frente da Argentina (78ª) e do México (79ª), embora atrás do Chile (66ª). De acordo com o Pew Institute Research, dos Estados Unidos, o Brasil foi o país que registrou o maior aumento no uso de computadores nos sete primeiros anos do milênio.
A pesquisa realizada pelo Pew Institute, com mil entrevistados em 35 países, indicou que o número de pessoas que usam computador no país subiu de 22% para 44%, um salto de 22 pontos percentuais. Na consulta mundial, o Brasil foi seguido pela Eslováquia, com aumento de 21 pontos percentuais em relação a 2002, para um total de 73% dos entrevistados.
Já o estudo da Untad aponta que subiu também o número de brasileiros usuários de banda larga: de 731 mil (2002) para 5,92 milhões (2006). No ranking geral dessa categoria, o Brasil obteve 57° lugar numa lista de 110 países, mais uma vez depois do Chile (38°) e do México (57°). Bermudas, Holanda e Dinamarca ocuparam as primeiras posições.
Embora tenha dado o maior salto, a utilização de computadores no Brasil ainda é bem menos disseminada do que em países desenvolvidos, como a Suécia, onde 82% dos entrevistados usam a tecnologia, o maior índice mundial. Em seguida vêm Coréia do Sul (81%) e Estados Unidos (80%).
“Apesar de o uso de computadores ter aumentado em muito nos países pobres ou em desenvolvimento nos últimos cinco anos, ainda é perceptível um abismo digital, fazendo com que o uso de computadores ainda seja maior nos países mais ricos”, avalia o relatório das Nações Unidas. No Brasil, 64% dos entrevistados disseram ter celular, um aumento de 28 pontos percentuais em relação a 2002, o que coloca o país na quarta posição entre os países latino-americanos.
Com a falência de seu sistema telefônico convencional, os argentinos foram os que mais aumentaram o uso do celular na região, passando de 28% para 63%, um salto de 35 pontos percentuais. A tendência de ascensão foi seguida pelos bolivianos, com crescimento de 32 pontos percentuais. No mundo inteiro, a Rússia teve o maior crescimento (57 pontos percentuais): 65% dos entrevistados têm celular. Na lanterninha ficou a Itália, que estagnou em 79%.
Se todos os indicadores parecem atestar a total e acelerada integração do Brasil à rede mundial de computadores, outras medições registram o grande problema sócio-cultural e econômico do país. No estudo da Symantec, os dados mostram, por exemplo, que mais de três quartos dos entrevistados adultos (77%) confessaram ter feito amizades pela internet. Do total, 60% disseram que gostam tanto ou mais “dos amigos on-line” – e este foi o maior índice entre os países pesquisados.
As crianças brasileiras seguem a tendência: 74% cultivam amizades pela rede. O índice só é menor do que o da China (88%). Contrastando com esse panorama, os brasileiros são os mais desconfiados (13%) quando se trata de enviar informações pessoais pela internet, como o número do cartão de crédito. Os que mais trocam dados com pessoas desconhecidas são os americanos (34%).
Na pesquisa para descobrir os hábitos de 7 mil internautas, em oito países, a empresa de tecnologia Symantec detectou que 55% dos internautas brasileiros visitam páginas com conteúdo pornográfico quando estão on-line. Os chineses aparecem em segundo lugar na listagem, com 51%. O estudo investigou os costumes de 4.687 adultos e 2.717 crianças no Brasil, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, Alemanha, França, China e Japão.
Brasileiros – com celular e computador – aderem em massa às comunidades do Orkut, onde escrevem perfis e expõem preferências do tipo “eu amo”, “eu odeio”. Relacionam-se com desconhecidos pela internet, a quem consideram no mesmo nível de amizade das pessoas de carne e osso. As crianças também entram nessa conta, não só aprendendo a baixar músicas, como estabelecendo relações de confiança duvidosa com indivíduos que nem sabem se existem. E há milhares de internautas que se divertem vendo pornografia na rede.
O cenário não poderia ser mais alarmante. Se podemos comemorar o fato de mais gente buscar notícias no computador, também vemos com pesar os jornais de papel perderem credibilidade, por não saberem lidar com novas realidades e novos públicos. A rede – como espaço social – reproduz as características da sociedade. A preocupação de pais e mães com o acesso dos filhos à rede (mostrada na pesquisa) contrasta com o número de adultos que também se lançam em aventuras sem rostos e sem emoção – mas, do ponto de vista social, tudo isso mostra o tipo de espaço público que é a internet, com seus prós-e-contras, perigos e armadilhas.
Mostra também o nível de cultura dos brasileiros, para quem é muito fácil adestrar-se em ferramentas tecnológicas, aprendendo com o colega (que pouco lê), ali no ambiente da lan-house. Difícil é freqüentar a escola pública regular, que não tem sequer um computador e continua a oferecer ensino de baixa qualidade para populações que não podem pagar pela educação de alto nível. A exclusão é uma realidade e os resultados podem ser vistos claramente nestas três pesquisas.

Thaïs de Mendonça é jornalista, professora da UnB e pesquisadora do NEMP

A mídia contra a mídia

Por Cristhian dos Santos Camilo

Nas últimas semanas, repercutem pela rede mundial de computadores os efeitos da série de artigos que o jornalista Luís Nassif tem publicado, a respeito da revista Veja, em seu blog (http://www.projetobr.com.br/blog/5.html). Sob o título “O caso Veja”, o jornalista descreve como a revista modificou sua linha editorial ao longo do tempo, especificamente na cobertura que envolve disputas empresariais entre o grupo Opportunity e os fundos de pensão no setor de telefonia.
Os artigos chamam a atenção por ser a primeira vez em que um profissional plenamente reconhecido por sua competência faz acusações diretas a um dos chamados órgãos de imprensa e exatamente uma das publicações tida como das mais respeitadas e influentes do país. Não é novidade, contudo, para quem tem algum interesse por mídia, que Veja há muito tempo é apontada por diversas pessoas – especialistas ou leitores – como tendo perdido a sua característica original de veículo independente e de conteúdo de qualidade. Até hoje, no entanto, a revista nunca havia sofrido uma acusação tão contundente e extensa de manipulação como a que Nassif faz.
Por tabela, os escritos de Nassif acabam por atingir quase a totalidade da mídia convencional brasileira, uma vez que as matérias do semanário, com bastante freqüência, ecoam nos demais veículos de imprensa escrita ou televisionada. Não deve ser coincidência que, apesar da ampla repercussão do caso em blogs e observatórios de mídia na internet, há um silêncio estrondoso de jornais e tevês sobre o caso.
Esses artigos, juntamente com a onda de blogs de jornalistas que resolveram fazer da internet seu campo principal de trabalho, reforça o debate sobre a qualidade da imprensa brasileira e as intenções – ocultas muitas vezes, em outras nem tanto – que circulam nas redações de televisões, jornais e revistas. O mito da imparcialidade e objetividade da imprensa deixou de ser encarado como dogma e passou a ser objeto de discussões entre leigos e acadêmicos. O poder e alcance dessa mídia passou a ser cada vez mais contestado, principalmente com o advento da internet. Esse processo parece culminar agora como o embate Nassif X Veja, cujos efeitos ainda perdurarão por muito tempo, inclusive na esfera judicial, certamente.
Parece ser também o primeiro confronto aberto entre uma nova e uma velha mídia, esta encarnada pela imprensa convencional, e aquela representada não necessariamente por novos ou jovens jornalistas, mas por blogueiros, muitas vezes repórteres experientes como Luís Nassif ou Paulo Henrique Amorim, para ficar em dois exemplos. Para além da diferença óbvia do suporte material, há claras distinções entre linhas editoriais e conteúdo entre esses oponentes.
É interessante, por fim, que a série escrita por Nassif abre caminho para uma contestação formal da mídia pela própria mídia – não esqueçamos que ele foi por muito tempo membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo. Ou seja, esses artigos demonstram que há uma reflexão interna por parte de alguns jornalistas a respeito do tipo de jornalismo praticado no Brasil. Esperemos pelos próximos capítulos.


Cristhian Camilo é historiador

Zimbábue, liberdade de imprensa e informação

Por Enio Moraes Júnior
Zimbábue. Desde a primeira vez em que li o nome, o último da lista da relação de países na enciclopédia, jamais o esqueci. Fica na África, na África sofrida, pobre e miserável. Isso eu sabia desde quando cursava o ensino médio. Depois de alguns anos, Zimbábue foi se tornando no meu vocabulário uma palavra de uso oportunista, usada até de modo leviano, confesso.
- Senhor, aqui é do cartão tal... O senhor foi sorteado para adquirir o nosso serviço. Podemos conversar?
- Não, muito obrigado.
- Senhor Enio, por favor, são só alguns instantes... O senhor já possui algum cartão?
- Já, mas eu estou cancelando todos porque estou viajando na próxima semana e devo ficar algum tempo fora, em um outro país, por dois ou três anos.
- Senhor, mas nós temos cobertura internacional.
- Não, mesmo assim não. Obrigado.
- Mas, senhor, o senhor pode usar nossos serviços em qualquer país. Para onde o senhor vai?
- Para o Zimbábue.
- Ãaaaaaaaa. Tá. Então boa viagem!
Pronto: Zimbábue. Essa foi durante alguns anos a palavra-chave para dispensar esse tipo de telefonema. Selar esse destino era cortar a necessidade de ter um cartão “aceito em qualquer país”. Eu achava que todos haviam lido ou estudado que existia o Zimbábue e que ele era miserável, nada mais. Apostando nisso, esperava que os funcionários dos call-centers de cartões não mais me importunassem se eu falasse que ia para lá. “Em missão de paz”, acrescentava algumas vezes. A minha ‘desconversada’ era infalível!
Mas há alguns anos, jornalista formado, doutorando em Comunicação e estudando as relações da imprensa com os direitos humanos no mundo, o que era apenas um esdrúxulo e miserável país africano virou outra coisa. Com um significado menos engraçado, menos exótico, o Zimbábue agora chama minha atenção pelos índices aterrorizantes de violação dos direitos humanos, pelo desrespeito à cidadania e pela ausência de liberdade de imprensa. E talvez seja exatamente por este último detalhe que o país raramente esteja nos jornais, revistas ou sites.
Mas para minha surpresa, a publicação espanhola La Vanguardia do início de janeiro deste ano trouxe uma inquietante matéria sobre o Zimbábue (republicada no Brasil pelo Universo On-Line:
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lavanguardia/2008/01/31/ult2684u396.jhtm), uma ex-colônia britânica na época denominada Rodésia. A imprensa conseguiu mais uma vez minha atenção para o país.
A violação dos direitos humanos e o desrespeito à cidadania são flagrantes numa ditadura que já dura mais de 20 anos. “Os números falam por si: a expectativa de vida não chega aos 40 anos, a inflação oficial é de 8.000% (a real é estimada em 150.000%, a maior da história em qualquer lugar do mundo), e nem mesmo essa cifra significa nada diante da falta de dinheiro em circulação. A Reserva Federal de Zimbábue acaba de emitir novas cédulas de 1, 5 e 10 milhões de dólares locais. Os preços mudam a cada hora. Para comprar qualquer coisa -no caso improvável de que esteja à venda- é preciso levar uma sacola cheia de notas”, relata o jornalista Rafael Ramos, enviado a Harare, capital do país.
Mugabe – Com o poder total sobre o Zimbábue e sobre sua população desde 1987 (embora em 1980 já estivesse como primeiro-ministro), o presidente Robert Mugabe subemprega hoje mais de 60% da população do país, mantendo-se no poder apoiado por essa parcela de zimbabuanos em troca de pequenas subvenções como ferramentas de uso agrícola e comida.
Cerceada nos seus direitos civis, políticos e sociais, considerável parte dessa população está infectada pelo vírus da aids. Segundo dados publicados no ano passado pela Unaids – Joint United Nations Programme on HIV/AIDS– (disponíveis em http://www.unaids.org/en/) entidade ligada à Organização Mundial da Saúde, pelo menos 18% das mulheres grávidas no país são portadoras do HIV.
Mas apesar da miséria, algo de indignação e vida pulsa no Zimbábue: “Para um país que prende e tortura rotineiramente os membros da oposição, e no qual é contemplada com prisão a entrada no país e o trabalho sem permissão (que nunca é concedida) de jornalistas estrangeiros, surpreende o entusiasmo unânime com que todo mundo – atendentes de comércio, motoristas, porteiros de hotel, vendedores ambulantes, homens de negócios – critica e insulta Mugabe”, escreve Ramos.
Para completar o quadro caótico, o desrespeito à liberdade de imprensa, como acontece nas ditaduras, é um dos mais flagrantes problemas para a dignidade do povo zimbabuano. Dados disponibilizados no relatório Freedom Press 2006, realizados pela Freedom House (para detalhes consultar: http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=1), informam que de 194 países pesquisados, apenas 73 têm uma imprensa completamente livre, entre eles Chile, Uruguai, Estados Unidos, Canadá e os países da Europa Ocidental. Outros 54 possuem uma imprensa parcialmente livre, entre eles, o Brasil.
Mas o relatório também informa que do outro lado dessa ponta 67 dos países não gozam de liberdade de imprensa. Neste grupo encontravam-se Colômbia, Venezuela e grande parte dos países africanos, asiáticos e do leste europeu. O Zimbábue aparece nesta última e lamentável lista.
Democracia – Considerando a liberdade de imprensa experimentada por jornalistas e cidadãos de um país como sintomática em relação à qualidade da democracia, a posição do Zimbábue é eloqüente em relação às agruras do jornalismo local e também no que diz respeito à presença do jornalismo internacional na região.
Talvez esteja aí um dos grandes segredos da longevidade das ditaduras e da miséria da maioria de seus povos: o silêncio da imprensa cerceada e a conseqüente falta de articulação política dos cidadãos face à ignorância em relação às suas mazelas, que não são discutidas nas escolas nem denunciadas na mídia.
O respeito, total ou parcial, à liberdade de imprensa pode não ter conseguido construir grandes homens nos países democráticos, mas certamente onde quer que ela esteve ausente certamente se não construíram grandes países nem grandes liberdades humanas. Daí o mérito do jornalismo e da informação; daí a necessidade de o jornalismo cumprir o seu papel mais veemente: informar com respeito aos direitos humanos e ao cidadão.
“A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa de perto e ao longe, enxerga o que lhe mal fazem, devassa ou que lhe ocultam e tramam”, dizia o jornalista brasileiro Rui Barbosa em A Imprensa e o Dever da Verdade (São Paulo: Edusp, 2003. p. 22), publicado inicialmente nas primeiras décadas do século XX. Embora de lá para cá a imprensa tenha sido convertida em uma ‘vista do mundo’, a informação sempre foi e sempre será um saber a ser compartilhado por jornalistas e público em nome do bem comum.
Mas, além disso, “O discurso informativo não tem uma relação estreita somente com o imaginário do saber, mas igualmente com o imaginário do poder, quanto mais não seja, pela autoridade que o saber lhe confere. Informar é possuir um saber que o outro ignora (‘saber’), ter uma aptidão que permite transmiti-lo a esse outro (‘poder dizer’), ser legitimado nessa atividade de transmissão (‘poder dizer’)”, lembra-nos Patrick Charaudeau em Discurso das Mídias (São Paulo: Contexto, 2006. p. 63).
Embora pelo relatório da Freedom ainda tenhamos no Brasil uma imprensa parcialmente livre, quando leio as notícias nacionais de alguns jornais e revistas a que reputo credibilidade, fico tentado a pensar que esse Zimbábue descrito em La Vanguardia e em outras publicações ocasionais também é aqui... Mas há diferenças. A primeira é que por enquanto todos, no Brasil, ao contrário de lá – onde devem ser poucos –, compramos com cartões de crédito e somos “parcialmente” livres. A segunda é que essa liberdade parcial da nossa imprensa – e que representa também os limites da nossa cidadania ainda em construção – soam como ventos que anunciam chuva no sertão, nos enchendo de esperança de um país melhor.
Embora em países como o Brasil nem todos possam entender ou sentir os bons ventos de possibilidades que sopram, aqui e acolá, trazidos por um jornalismo sério e comprometido com a nação e com um mundo mais justo, regiões como o Zimbábue correm o risco de perecer pela falta desses ventos noticiadores das informações necessárias à construção de cidadãos. Em lugares onde não há uma imprensa minimamente livre dizimaram-se as liberdades para depois se dizimarem as esperanças e, finalmente, as vidas.

O presidente, o amigo do presidente e a cantora

Por Beatriz Marocco e Enrique Santamaría
Quando se trata de misturar ingredientes como sexo, fama, poder e política em um coquetel explosivo, o modo de objetivação jornalística dos acontecimentos se desvencilha da retórica da precisão e troca o rumo da qualidade pelo atalho do coração. No caso do chefe de Estado francês e da cantora, ex-modelo, os jornais em geral, de raiz burguesa, foram extremamente precisos. Mas em relação à fórmula do espetáculo e suas estratégias de midiatização das emoções que se exercem, como disse o sociólogo espanhol José Vidal-Beneyto, “sobre a política, reduzida à conquista e gestão do poder”, a confinaram “aos escritórios dos profissionais de marketing e de comando”. (El País, 5/1/2008, p. 12).
Nicholas Sarkozy chegou ao Cairo com Carla Bruni, a bordo de um jato particular do empresário e amigo, o industrial Vincent Bolloré, proprietário do canal Direct 8 e acionista dos jornais Direct Soir e Matin Plus e da agência AP, entre outras empresas, que já o havia presenteado com uma viagem de iate a Malta, após a vitória nas eleições presidenciais de maio passado.
Durante a visita às pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerinos, o casal foi amplamente iluminado. Na foto mais interessante, publicada no dia 31 de dezembro, os dois corpos ocuparam um pequeno espaço em que não existia distância entre eles, nem diferença entre ambos e em que o gigantesco monumento duplica a borda da cena e determina o ligeiro movimento inclinado dos corpos. A cena parece ter sido habilmente montada para jogar com imagens arcanas que se replicam automaticamente em nossa mente e atualizá-las nos elementos visíveis que Sarkozy e Bruni deixaram para trás: no momento do registro, a dupla mantém a mirada fixa, exatamente na direção oposta a nossa, que nos distraímos com a beleza do conjunto. O que a dupla contempla — e se vê que faz isso com muita intensidade — é algo que só poderíamos ver se o fotógrafo fosse outro e estivesse voltado justamente para o lado oculto da representação.
Seguindo por essa pequena abertura que a imagem permite, vemos que a nós, espectadores que fixamos o olhar na dupla, se apresenta o que já conhecemos. É neste sentido que o campo da política dá ao jornalismo pequenas porções daquilo que se alinha à agenda midiática e está no gosto geral — sensações e migalhas de intimidade — e este produz, em troca, novos relatos de histórias arcanas, com muito pouca narrativa e embaladas em espetáculo. A vida cotidiana, graças a essa produção da vida arquitetada por diferentes atores e levada a cabo pelos jornais, ficará para um segundo plano. Assim, mesmo acusado, com razão, de manipular a mídia e encobrir com ruído midiático suas encrencas políticas, Sarkozy aparecerá radiante ante os leitores após o anúncio do divórcio de Cécilia e as humilhações que lhe infligiu o presidente líbio, Muammar Gaddafi, durante sua absurda estada parisiense.
Marine Le Pen, a vice-presidente da Frente Nacional, de extrema-direita, criticou de maneira muito rápida, adiantando-se a outras formações políticas, as práticas de marketing e ficcionalização das emoções que embalaram o romance. Não passa de "um conto de Natal barato, uma cortina de fumaça para fazer esquecer os verdadeiros problemas do país", disse ela. De fato, esse exibicionismo enjoativo e rosa, que coloca no primeiro plano a dimensão afetiva, desvia o interesse das dificuldades políticas com as quais já se enfrenta o atual primeiro governante francês. Certamente, o mesmo romance que humaniza um fiel e ferrenho defensor do Leviatã maquia outras histórias bem menos açucaradas. Os sentidos de proximidade e compreensão que produz, bem como os efeitos que nos apresenta, incidem sobre o coadjuvante de uma dita política de civilização, cuja retórica de revitalizar e transformar a vida social e política francesa ao ritmo de golpes de efeito (como a nomeação de oponentes políticos, cenários cuidadosamente montados para a libertação de jornalistas e a tripulação do avião detidos no Sudão,...), ofusca uma política neoconservadora que, em consonância com os interesses do mercado e o realinhamento internacional do Estado francês, recorre abertamente ao agravamento e à penalização das tensões e conflitos sociais, como mostra exemplarmente o tratamento dado a setores populares que habitam nas periferias urbanas, mais particularmente aos mais jovens entre eles.
Vidal-Beneyto, convidando-nos a exercer continuamente uma atitude crítica, acredita que os elementos exógenos que se parasitaram na política, multiplicaram a corrupção e privaram os seus líderes de toda responsabilidade pelo exemplo. Ao mesmo tempo e de maneira paradoxal, essas práticas reforçaram o prestígio dos políticos entre os poderosos, pela sua indiscutível eficácia de obter resultados positivos.
Nesse sentido parecem refletir o que ocorreu na Espanha a partir de meados dos anos 1980, quando os governos socialistas promoveram a contaminação do privado na vida política espanhola. Durante aqueles anos, o fenômeno que agora parece emergir na França, anunciava um desdobramento do social-liberalismo que, além de confundir a vida privada com a pública, transformava em objeto de privatização econômica cada vez mais espaços do comum e do enorme bolo estatal. Nos anos 1990 e primeiros anos do novo século, os governos conservadores estenderam e aprofundaram as privatizações, alçando conhecidos personagens vinculados a sua formação política ao comando de grandes empresas privadas que tiveram origem em anteriores privatizações.
O romântico romance configura igualmente uma manifestação de uma época marcada pelo escrutínio permanente e pormenorizado das vidas dos atores e cada vez mais dos atores políticos. A exibição do relacionamento afetivo entre um governante e uma artista permitiu que na França se tratasse midiaticamente um político da mesma forma com que são tratados cantores e outras stars do mundo e das indústrias culturais, exibindo Sarkozy com um certo prazer arrevistalhado das fofocas infames, muitas vezes promocionais, sobre celebridades instantâneas. Assistimos, portanto, a um espetáculo que consuma uma nova redução da débil democracia representativa.
O romance entre o presidente e a cantora começou no dia 3 de novembro do ano passado, duas semanas depois da separação de Sarkozy, quando ele recebeu uma comissão formada por artistas e gente do mundo dos espetáculos que havia feito um relatório sobre pirataria na internet, entre os quais se encontrava Bruni. No início de dezembro, o publicitário Jacques Séguéla ofereceu em sua casa um jantar para editores, escritores, jornalistas, Nicolas e Carla.
Sarkozy, 52, se divorciou em outubro da mulher, Cécilia. Seu namoro com a italiana Bruni, 39, o manteve em foco mesmo no fim do ano, época em que os sindicatos estão quietos na França e os líderes dos países ricos não costumam marcar reuniões de cúpula.
Os franceses reagiram com um desdém invejável a tanto barulho. Em pesquisa recente, 89% dos entrevistados opinaram que o romance entre Sarkozy e Bruni é assunto privado. Em outras palavras, o recado parece ser o seguinte: os políticos podem dedicar parte de seu tempo a cultivar intensamente suas relações amorosas, dentro e fora do casamento; o importante é saber não confundir o público com o privado e pessoal, não diluir as coisas do Estado nos affaires pessoais.
Marroco é Jornalista, professora e pesquisadora da Unisinos; Santamaría é Sociólogo e professor da Universidad Autónoma de Barcelona

O risco da falta de ceticismo da imprensa

por Solano Nascimento

No final de dezembro de 2007, alguns dos principais jornais do país publicaram matérias acerca de um fato que reúne, ao mesmo tempo, um exemplo clássico de negligência de autoridades e outro de falta de cepticismo — ou excesso de confiança em fontes oficiais — por parte de jornalistas. As matérias saíram com os títulos “Toxina de fungo causa beribéri, diz Embrapa”, na Folha de S.Paulo, “Beribéri é causado por fungo que contamina o arroz”, no site do Globo Rural, e em vários outros veículos de imprensa. Apesar da falta de repercussão das matérias, elas envolvem a morte de pelo menos 42 pessoas e a hospitalização de centenas no Maranhão, a maior parte delas agricultores pobres.
O episódio começou a ser revelado no final de junho de 2006. Primeiro se soube que uma síndrome neurológica, cuja causa não havia sido identificada, matara sete pessoas e causara a internação de outras 24 no sul do Maranhão. As vítimas apareciam com inchaço nas pernas, diminuição da sensibilidade e aumento do tamanho do coração. Alertado por autoridades locais e pelo espaço que o caso começava a ganhar na imprensa, o ministério da Saúde enviou técnicos à região para descobrir o que estava ocorrendo.
O primeiro diagnóstico foi conhecido menos de duas semanas depois. De acordo com a Vigilância Epidemiológica do ministério, a beribéri — falta de vitamina B1 — havia matado os maranhenses. Essa vitamina, encontrada em alimentos como ovos, leite, legumes e alguns cereais, é fundamental para o funcionamento do sistema nervoso, dos músculos e do coração. Como registrou a Folha, Expedito Luna, coordenador da Vigilância Epidemiológica, afirmava estar “encerrada” a investigação sobre a causa da síndrome. E explicava o porquê: “A literatura médica reconhece que a prova terapêutica é uma confirmação diagnóstica. Tínhamos três pacientes muito mal na UTI, que reagiram com a suplementação da B1 e estão curados”, disse o coordenador ao jornal. Na Folha, a matéria sobre os estudos do ministério saiu com o título “Falta de vitamina B1 causou as mortes no Maranhão”. A reportagem apontou que a “pobreza e a má alimentação que decorre dela são traços que unem as vítimas no interior do Maranhão”. Em seu site, a Agência Brasil, da Radiobrás, publicou matéria semelhante, que tinha como fonte o governo maranhense. O título era “Falta de vitamina B1 matou 33 no Maranhão, informa Secretaria de Saúde”. A conclusão das autoridades foi divulgada quando o número de óbitos ainda não tinha chegado às quatro dezenas.
Ao Correio Braziliense, o Ministério da Saúde apresentou duas hipóteses distintas que estariam por trás da carência de vitamina B1. Nutricionistas da Secretaria de Atenção à Saúde que estiveram no Maranhão suspeitavam que o aumento no gasto energético de agricultores, por causa da colheita do arroz, aliado a uma dieta já pobre em vitamina B1, tinha causado o problema. Já a Vigilância Epidemiológica desconfiava que redução na oferta de alimentos provocada pela entressafra estava na origem da beribéri.
O que passou despercebido para quase a totalidade dos jornalistas é que a explicação do ministério da Saúde, por mais recheada de argumentos científicos que fosse, simplesmente não tinha lógica. Informações que já tinham sido publicadas sobre as mortes no Maranhão e os dados de um boletim elaborado pelo próprio ministério e divulgado no portal do órgão por ocasião das conclusões da Vigilância Epidemiológica deveriam ter alertado a imprensa para o fato de o diagnóstico das autoridades ser capenga. As razões: 1) dos 33 primeiros óbitos registrados, 12 ocorreram em maio de 2006. Por que uma carência alimentar teria se agravado a ponto de matar muito mais exatamente em um único mês?; 2) do total de mortes, sete ocorreram em Imperatriz, e as demais, nas proximidades. Por que uma carência alimentar teria se concentrado em uma região do estado e não em outras onde moradores têm os mesmos hábitos alimentares e as mesmas atividades?; 3) 94% das vítimas, somados mortos e hospitalizados, eram homens com idade entre 14 e 44 anos. Por que as mulheres e as pessoas de outras faixas etárias, que tinham a mesma dieta alimentar, foram poupadas da carência?
A falta dessas respostas deveria ter feito a maior parte dos veículos de imprensa exigir o aprofundamento das investigações. Isso não ocorreu. Em compensação, o ministério da Saúde, aparentemente convencido de sua própria explicação, despachou novos funcionários para o Maranhão com a incumbência de distribuírem doses suplementares de vitamina B1 e orientarem moradores a respeito da alimentação. Como o ministério estava equivocado, essas medidas não foram suficientes para impedir que, um ano depois, no primeiro semestre de 2007, o problema reaparecesse matando pelo menos outras quatro pessoas e levando mais de 200 aos hospitais.
Foi só depois das novas mortes que exames feitos pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pela Embrapa revelaram que, na verdade, a carência de vitamina B1 era o primeiro efeito do problema, e não a causa. O que realmente ocorreu, segundo os novos estudos, foi a contaminação de arroz por um fungo, responsável pela liberação da toxina citreoviridina, que inibe a absorção da vitamina B1. O fungo foi encontrado em um tipo de arroz que não é secado e costuma ser armazenado em locais úmidos e consumido no local. A existência do fungo explica a concentração espacial e temporal, e o tipo de arroz contaminado justifica o fato de homens agricultores, que comem o produto nas lavouras, terem sido a maioria das vítimas.
Além da falta de cepticismo e do excesso de fé nas fontes oficiais, o episódio mostra ainda a velha falta de memória da imprensa. Matérias publicadas com base nas descobertas da Embrapa e da universidade não registraram o erro do ministério da Saúde que, por sua vez, induziu a maior parte da imprensa a divulgar uma informação incorreta. A investigação não poderia ter sido “encerrada”, como anunciou a Vigilância Epidemiológica, e sua continuidade – que não foi assegurada por autoridades nem cobrada pela imprensa – poderia ter evitado as últimas mortes.
Solano Nascimento é pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp), da Universidade de Brasília